O denominado testamento vital é um documento redigido por uma pessoa – que esteja no pleno gozo de suas faculdades mentais -, com o objetivo de dispor acerca dos tratamentos a que deseja se submetida quando estiver diante de um diagnóstico de doença terminal e impossibilitada de manifestar sua vontade. Para que as disposições sejam válidas, apenas podem versar sobre interrupção ou suspensão de tratamentos extraordinários, que visam apenas a prolongar a vida do paciente. Tratamentos tidos como cuidados paliativos, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida do paciente não podem ser recusados.
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução estabelecendo a conduta médica a ser adotada perante as manifestações de vontade do paciente terminal.
Confira a matéria publicada no jornal Zero Hora, no dia 22/09/2012:
Testamento vital amplia autonomia do paciente em relação à própria morte – Bem-estar – Zero Hora
“Considero que viver é um direito, não uma obrigação, como foi o meu caso”.
A frase, dita pela atriz Ramón Sampedro na premiada produção cinematográfica espanhola Mar Adentro, sintetiza a luta pelo direito de morrer — uma questão da vida real que foi parar da tela dos cinemas.
O tema voltou à tona depois que o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 1.995, de 9 de agosto de 2012, estabelecendo as diretivas antecipadas de vontade como conjunto de desejos manifestados pelos pacientes. Na semana passada, uma matéria de capa publicada pela Revista Veja reascendeu a discussão sobre o tema, repercutindo a questão da morte como um direito de escolha em vida.
O novo instrumento determina que a vontade do paciente em estágio terminal deve ser conhecida, registrada e respeitada pelo seu médico. Permite ao paciente registrar, por exemplo, que não ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos, nem submetido a procedimentos invasivos ou dolorosos.
Válido apenas para pacientes em estágio terminal, ou seja, cuja morte não tem mais reversão, o documento registra a soberania da vontade do doente sobre sua família.
Ao dar mais autonomia para o paciente, explica o presidente do CFM, Roberto D’Ávila, a medida acompanha uma transição pela qual a profissão está passando, que é a diminuição do caráter paternalista do médico.
— Sempre aparece algum paciente com conhecimento de causa, por isso temos a obrigação de mostrar o que é melhor. Alguns profissionais estão tendo dificuldade de conviver nessa nova fase — afirma D’Ávila.
Pesquisadora do Instituto da Bioética da PUCRS, a advogada Lívia Pithan entende que a medida ajuda a intervir quando tecnologias abusivas e desnecessárias são utilizadas para prolongar o processo de morte.
Uma novidade que vem junto com a resolução, explica Lívia, é que, a partir de agora, o comitê de bioética dos hospitais terá propriedade para tomar decisões. Antes, era apenas consultivo. Isso ocorrerá no caso de o paciente não ter um testamento vital, e a família não chegar a nenhum acordo sobre a resolução. Além da comitê, a equipe médica também pode tomar decisões, podendo buscar auxílio de outros profissionais da saúde.
Vinculado ao movimento dos cuidados paliativos, o tema envolve uma série de debates éticos. Embora alguns setores isoladamente possam discordar da medida, Moacir Arus, professor de medicina legal da UFRGS e chefe do serviço de dor e medicina paliativa do Hospital de Clínicas explica que trata-se de uma ortotanásia, ou seja, morte no tempo certo e natural, impedindo sofrimento extremo muitas vezes desencadeado pelos próprios tratamentos.
— Não se pode confundir com eutanásia, que é a interrupção da vida de forma ativa. Trata-se de evitar uma distanásia, ou seja, a morte sofrida, prolongada e sem perspectivas de qualidade.
Segundo Arus, um dos desafios para a classe médica será ampliar diálogo com os pacientes. De acordo com o especialista, com a superespecialização da medicina, há dificuldade de imprimir um caráter de atendimento global:
— As pessoas estão clamando por atenção, orientação e esclarecimentos. Os médicos terão que deixar de ser tão técnicos, ser mais humanos e melhorar sua visão integral dos pacientes.
Dúvidas frequentes
:: Como as diretivas antecipadas de vontade devem ser registradas?
O médico registrará, no prontuário, a vontade que lhe for diretamente comunicada pelo paciente.
:: É possível cancelar o testamento vital?
Sim, desde que o paciente esteja lúcido para fazer isto. Portanto deve procurar o médico para manifestar esta mudança, bem como alterar no cartório, caso seja registrado.
:: O médico pode discordar do testamento?
Depende. O médico de confiança deve orientar o paciente e até participar da elaboração do testamento vital. Se durante o tratamento surgirem novas opções terapêuticas, o especialista deve apresentá-las ao paciente.
:: Quem pode fazer?
Maiores de 18 anos ou emancipados, desde que estejam lúcidos.
:: Posso eleger um representante que não seja da família?
Sim, um procurador pode ser qualquer pessoa de confiança.
:: Parentes têm prioridade acima de um representante legal?
Não, as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. O familiar só tem poder de decisão caso tenha sido designado pelo próprio doente como seu representante.
A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) não determina um modelo a ser seguido. O testamento vital pode ser firmado mediante um acordo verbal entre o paciente e o médico. Por medida de segurança, no entanto, ele deve ser por escrito, com pelo menos duas testemunhas.
Entrevista – Jeferson Piva, médico
“A sociedade começará a falar mais sobre a morte”
Um dos responsáveis por criar a resolução do Conselho Federal de Medicina, o médico Jeferson Piva integra a Câmara Técnica que discutiu o tema na entidade.
Na entrevista a seguir, o especialista fala como a medida irá interferir na relação entre médico-paciente quando a vida está no fim.
Vida — Como a decisão modifica a relação médico-paciente?
Jeferson Piva — Se olharmos o Código de Ética, vamos ver que há vários pontos falando que os médicos devem respeitar a autonomia dos cidadãos. Ou seja, escutar e estar de acordo com o paciente sobre as técnicas executadas. Na prática, isso já acontece há muito tempo. O que mudou é que, antes, as pessoas tinham um médico que conhecia bem o paciente. Hoje, pouco se conhece, pois são vários especialistas. O que a resolução acrescenta é que leva as pessoas a pensarem sobre isso e comuniquem seus médicos. Hoje, a perspectiva é de que se tenha uma vida longa, que dentro do possível seja boa. O final, no entanto, pode ser doloroso. O melhor é que o desejo do paciente seja registrado. Fica mais fácil para o médico tomar a decisão.
Vida — Que importância tem a resolução?
Piva — A sociedade vai falar sobre a morte. A gente nasce com a certeza de que vai morrer, mas pouco fala sobre o assunto. Quando deparamos com essa situação, não sabemos como reagir. O que está sendo proposto é que se gere uma reflexão. Isso representa uma maturidade social para o Brasil.
Vida — Tem alguém que, legalmente, está posicionado contrário à medida?
Piva — Até agora, não. Nosso grande receio é que isso se tornasse uma manobra legalista, que a pessoa tivesse que ir ao cartório, com o advogado. A proposta é simples: que fique o registro no prontuário, sem necessidade de assinatura do paciente. A família precisa estar ciente. Essa medida deu uma dimensão prática para o tema e evitou a burocracia. Se nós tivéssemos enveredado pelo campo jurídico, ia complicar mais, ia trazer atores que não fazem parte do processo.
Vida — E quando a decisão da família diverge daquela do paciente?
Piva — É um problema. Nem sempre a família está preparada para acatar a decisão do paciente. Às vezes, situações como o interesse por uma herança ou um casamento desfeito podem influenciar na decisão. Por isso, ela deve ocorrer antes de o paciente estar na fase terminal. Se a família diverge, discutimos entre a equipe médica, podendo também recorrer à equipe de bioética, psicólogos ou a comissão de ética. Fazemos tudo para evitar que a decisão seja tomada na porta da UTI.
Vida — Caso não concorde com a decisão, a família pode recorrer judicialmente?
Piva — A vontade suprema é a do paciente. Mas se ele não deixou testamento vital e a família não entrou em consenso, é possível que a situação tenha repercussão na justiça. Porém, essa não é a tradição do nosso país. Nos Estados Unidos, isso ocorre com frequência. A forma de gerenciar essa situação é, em primeiro lugar, evitar o conflito. Segundo, buscar o diálogo com a família e se for preciso, mudar a decisão.
Vida — E como ocorre quando a decisão do paciente vai contra a ética médica?
Piva — Se o paciente pede para eu dar uma injeção letal quando ele sentir dor, não posso acatar seu pedido. Isso é eutanásia, é um crime e vai contra a moral da Medicina. Tudo o que for contra o código de ética, não pode. Dentro das opções éticas, paciente e médico escolhem a melhor.
O tema no cinema
Mar Adentro
Baseado na história real de Ramón Sampedro (interpretado por Javier Bardem), o filme fala sobre um mecânico que ficou tetraplégico depois de um acidente de mergulho e mostra sua campanha de 29 anos de apoio à eutanásia e ao direito que alguém tem de acabar com sua própria vida.
Menina de Ouro
Frankie Dunn é um treinador de boxe que já conquistou vários títulos. É quando aparece em sua academia a obstinada Maggie Fitzgerald. Após muito esforço, ela consegue com que Frankie seja seu treinador, se torna uma ótima lutadora, até que um acidente a deixa tetraplégica e ela pede para que o treinador não a deixe viver sofrendo.
Golpe do Destino
The Doctor (no Brasil, Golpe do Destino) é um filme americano de 1991, dirigido por Randa Haines e estrelado por William Hurt. O ator interpreta o papel de um médico que sofre uma transformação em suas visões sobre a vida, a doença e as relações humanas após se tornar paciente.
O que é um paciente terminal?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, paciente terminal é aquele que tem entre três e seis meses de vida. Ou seja, a medicina caracteriza como terminal aquele paciente que, utilizando todo tipo de tratamento disponível, não tem perspectivas de sobreviver.
Fonte: Zero Hora